artigo da semana
-SIR ARTHUR CONAN DOYLE - ESBOÇO BIOGRÁFICO-
Por Julio Abreu Filho
Uma colaboração de Estênio Negreiros (estenio.gomesnegreiros57@gmail.com)
O AUTOR da obra que se vai ler era muito conhecido da juventude de uns cinqüenta anos passados, como o criador de Sherlock Holmes. Naquele tempo líamos literatura neolatina no original e anglo-saxônica através de boas traduções francesas ou em nossa língua. Hoje a mocidade lê histórias em quadrinhos, onde o vocabulário representa apenas um décimo do que manejávamos.
O nível baixou. Se, então, eram as biografias um aspecto pouco explorado em literatura, hoje pouco se conhece das vidas grandes e nobres. Tanto que, quando o autor destas linhas disse que estava traduzindo uma HISTÓRIA DO ESPIRITISMO de Sir Arthur Conan Doyle, despertou atenção por estas coisas: que o criador de Sherlock Holmes tivesse sido “knighted”, como se diz em inglês; que fôsse algo mais que um escritor de contos policiais; que tivesse tido a cachimônia de levar a sério o Espiritismo e fazer, com aquela proverbial seriedade dos escritores inglêses, uma História do Espiritismo.
Estavam certos — relativamente certos — os interlocutores de quem traça estas linhas. Por dois motivos: o primeiro é que o nível dos contos policiais baixou; o segundo é que em geral se ignora, nos países latinos, que os inglêses de cultura universitária não tomam cursos de técnica superior — como em geral os latinos e particularmente os brasileiros — a fim de serem chamados doutôres, ou como um meio fácil de fazer dinheiro. É uma questão de educação, há muito ali resolvida e na qual andamos tateando, sem coragem de modificar o nosso figurino. Sôbre o assunto bastaria recomendar três livros de um único escritor inglês, representativo de brilhante período da cultura inglesa - o período vitoriano — Sir John Ruskin — a saber: Sesame and Lulies, The Seven Lamps of Architecture e The Stone of Venice. Na verdade o inglês de certa classe, mesmo de qualquer classe, que houvesse atingido mais alto grau de cultura através da universidade, não tinha apenas um verniz: os conhecimentos e o ambiente lhe haviam lapidado o espírito, transformado a compreensão da Vida e criado novos rumos para o seu comportamento social.
Por isso o inglês dêsses níveis mais altos exercia a profissão, parcialmente, para ganhar dos que podiam pagar sem serem explorados, parcialmente, para servir aos que não podiam pagar, mas deviam sentir que a solidariedade humana não era mero tema para discursos políticos de campanhas eleitorais. Paralelamente, êsses homens de padrão universitário exercem uma atividade extra que, se por um lado contribui para o seu próprio progresso espiritual, por outro ajuda o levantamento da cultura do povo.
Isto é, sem dúvida, um dos mais belos efeitos da concepção inglêsa de religião; esta não se separa da vida e a vida é considerada como que vascular, segundo a expressão do Reverendo Stanley Jones, que assim explica: “onde quer que a firamos, ela sangrará”. Dêste jeito tem o inglês um sentido prático de religião, — que deixa de ser uma fuga para os planos abstratos, que ficam depois dos túmulos, do mesmo passo que tem uma noção mais objetiva de humanismo — que deixa de ser uma verbiagem excitante para ser uma soma de conhecimentos de imprescindível aplicação à Humanidade.
Assim, não é de admirar que um Churchill cultive a pintura ainda aos oitenta anos; que um John Ruskin vá para o campo com os universitários trabalhar na reparação de estradas que se haviam tornado intransitáveis; que Frederic Myers, Lord Balfour, Sir William Crookes, Sir Oliver Lodge e tantos outros, que se encontram no tôpo das graduações científicas de várias especialidades, se apliquem, paralelamente, a outras atividades monetàriamente improdutivas, mas que contribuem largamente para o bem-estar espiritual do povo.
Ora, todos êstes nomes do último grupo deram exemplo de compreensão de quanto o conhecimento do porquê da vida, do porquê da diversificação das existências pode contribuir para o bem-estar geral, depois de ter criado aquela serenidade espiritual que nos torna altamente conscientes e nos subtrai daquele fatalismo da massa muçulmânica, que amesquinha a criatura. Mas não quiseram basear-se em sermões mais ou menos sonoros nem nas citações mais ou menos papagaiadas de textos bíblicos: basearam-se nos fatos. E se o fenômeno espírita era um fato da natureza, até então pouco estudado, estudaram-no; buscaram apreender a lei que os rege. E nisso nada viram daquele ridículo que pseudo sábios ou pseudo religiosos procuram lançar sôbre coisas que ignoram. Para êles, verdadeiros sábios, não existe ridículo nem imoralidade nas leis da Natureza, que são as mesmas leis de Deus. Ridículo e imoralidade estão em nós, na nossa maneira de ver a vida; constituem, por assim dizer, os óculos da nossa observação.
Mas voltemos a Sir Arthur Conan Doyle.
Estamos dizendo que o nível do conto policial havia baixado. Baixou, pelo menos daquela cota em que Conan Doyle havia elevado a produção do suposto criador dêsse gênero literário — o escritor francês Gaboriau. Mostra-nos a cronologia que o iniciador dêsse tipo de literatura foi um escritor americano, também espírita e certamente um médium inconsciente de suas faculdades cripto-psíquicas — o grande poeta americano Edgard Allan Poe, autor do Mary Roger Case e outros contos policiais. Mas não desgarremos; frizemos um contraste essencial: enquanto o policial atual é violento, Sherlock é suave; aquêle usa a fôrça muscular, êste o vigor do raciocínio. Dir-se-ia que, mesmo antes de se tornar espírita, Sir Arthur marcava, na sua obra popularíssima, a superioridade do Espírito sôbre a Matéria, da Inteligência sôbre a Fôrça Física, do Conhecimento sôbre a Pistola Colt.
E já que entramos por êste raciocínio, seja-nos permitido admitir que as cidades, como as famílias, parece que têm um certo poder atrativo para determinados tipos de Espíritos. Dirse-ia que elas possuem aquilo que os orientais chamam de karma coletivo, como o possuem as famílias, e que nos indivíduos é uma espécie de magnetismo espiritual. Não será isso que cerca de encanto a vida de certas universidades e de certas cidades, como, por exemplo, Florença?
Não estará no mesmo caso a cidade escocesa de Edimburgo? De onde o seu nome? De um certo rei Edwin, de Northumber. land, que a fundou no século VII? Edimburgo que foi elevada a cidade por Carlos 3º em 1633, é considerada mais uma cidade intelectual do que industrial, pôsto que seja um importante centro de tecidos de lã, algodão e sêda; tinha fábricas de cristais, destilarias e fundições, além de importante indústria livreira. Mas os seus estabelecimentos de ensino entre os quais se destacam a universidade, a escola de medicina, o conservatório de belas artes e a escola de artes e ofícios, lhe valeram o epíteto de Nova Atenas.
Entre os filhos notáveis que a honram — e dos quais Sir Arthur Conan Doyle não é dos menos celebrados — contam-se John Ogilby, nascido em 1600, tradutor e editor das obras de Virgílio e de Homero e das Fábulas de Esopo; a família Blair, entre cujos membros sobressaem John Blair, ligado à história de sua independência e Hugh Blair (1718, 1800), notável orador e professor na universidade de Saint Andrews, onde seu nome foi ligado à cadeira de retórica e belas letras; a célebre família Napier ou Neper, segundo a grafia latina, onde aparecem destacados vultos na Marinha e no Exército, mas cujo tronco ilustre foi John Napier ou Joannis Neper, grande matemático e inventor dos logaritmos ditos neperianos, cuja publicação apareceu com êste longo título, ao gôsto da época: Logarithmorum canonis descripto seu Arithmeticorum supáginasutatwnum marabilis abbreviatio, ejusque usus in utraque trigonometria, ut etiam in omni logistica matematica amplissimi, jacilimi et expeditissimi explicatio, auctore ac inventore Joanne Nepero, barone Merchistonii, Scoto (1614).
Não esqueçamos David Hume, filósofo e historiador (1711. 1776), que nos deixou um Tratado sôbre a Natureza Humana, Ensaios Morais e Políticos, História Natural da Religião, Ensaios Sôbre a Imortalidade da Alma, além de vários outros trabalhos sôbre moral e religião e, de parceria com outros advogados, uma História da Inglaterra. Por fim destaquemos um típico escritor escocês — Sir Walter Scott (1771 - 1832). Iniciando-se em 1802, com o Canto da Fronteira Escocesa, escreveu mais trinta obras, entre as quais são mundialmente conhecidas e apreciadas A Dama do Lago, que inspirou a Rossini a ópera do mesmo nome, Guy Mannering; A Prisão de Edimburgo; A Noiva de Lammermoor, de onde foi extraído o libreto da ópera de Donizetti, Lucia de Lanrmermoor; A Formosa Donzela de Penh e Ivanhoe, talvez, de suas obras a mais conhecida e que conta maior número de traduções.
Tôda essa tradição magnífica de sua cidade deve ter influído poderosamente na formação espiritual de Sir Arthur. Sabe-se que seu avô era o caricaturista de nomeada — John Doyle, sôbre o qual, entretanto, temos poucas indicações. Os traços genealógicos de que dispomos dizem que seu pai, Charles Doyle, era um artista. Quem seria êsse artista? Certamente era Sir Francis Hastings Charles Doyle, poeta nascido no Condado de York, em 1810 e morto em 1888. Foi funcionário da administração e publicou várias obras, entre as quais Poemas Diversos; Dois Destinos; Édipo, Rei de Tebas; Os Firnerais do Duque; A volta dos Guardas, etc. Foi professor de poética na Universidade de Oxford, entre 1867 e 1872.
Teve, assim, o jovem Arthur um ambiente propício, quer em sua casa e em sua pátria, quer no estrangeiro, onde seu pai estêve a serviço do govêrno, pois se sabe que o nosso biografado fêz parte de sua educação na Alemanha. Nascido a 22 de maio de 1859, sua educação foi feita sucessivamente no Stonyhurst College, na Alemanha e na Universidade de Edimburgo, onde, em 1881, terminou o curso de medicina (M.B.) e quatro anos mais tarde o doutorado em medicina (M.D.)
Sabe-se que viajou muito pelas regiões árticas e pela costa ocidental da África.
Escreveu algumas obras na juventude, que devem ter passado inadvertidas ou que êle próprio teria retirado da circulação, pois a primeira citada cronolôgicamente é “A Study in Scarlet”, publicada em 1887, quando já estava clinicando em Southsea. No ano seguinte publicou outro romance — Micah Clarck. A história da rebelião de Monmouth. “The sign of Four”, em 1889 e em 1891 “The White Company”, que obteve grande sucesso, e que foi seguida por um romance da época de Du Guesclin.
Nesse ano de 1891 Sir Arthur Conan Doyle conquistou imensa popularidade com as “Aventuras de Sherlock Holmes”, que apareciam em The Strend Magazine. Como indicamos pouco antes, dizem que o seu inspirador foi Emile Gaboriau, escritor francês que havia fracassado no gênero romance e que em 1866 publicara, com estrondoso sucesso, em folhetim em Le Pays, um romance judiciário policial intitulado l’Affaire Levou ge, que lhe valera grande nomeada e o sucesso para mais dez outras obras no gênero.
É possível. Mas é mais provável que, dadas as inclinações artísticas e literárias de Sir Arthur, tivesse êle conhecido tôda a obra de Edgard Allan Poe, que é, ao nosso ver, o verdadeiro criador do conto e do romance policial, quer quanto às características literárias, quer quanto à precedência histórica. Em nossa opinião, o criador de Sherlock está mais próximo dos métodos de raciocínio de Poe, que dos de Gaboriau.
Com a importância literária e a popularidade de Sherlock, cujas aventuras se iniciam em “A Study in Scarlet”, a prática da medicina de Sir Arthur Conan Doyle passa para segundo plano, à medida que cresce o escritor. Em 1893 reaparece o herói nas “Memórias de Sherlock Holmes”, seguidas de “O Cão dos Baskervill.es”, em 1902 e de “A Volta de Sherlock Holmes” em 1905.
Enganam-se, porém, os que pensam que Sir Arthur haja cultivado apenas êste gênero literário. Já em 1896 publicava êle estudos históricos em “As Explorações do General Gerard” e em “As Aventuras de Gerard”. Antes, porém, em 1894, havia publicado “A História de Waterloo”, na qual Sir Henry Irving havia tomado parte tão saliente. Em 1909 lançou “The Fires oj Fate” e “The House of Tem periey” e em 1913 outro volume interessante — “The Poison Belt”.
A pena de Sir Arthur Conan Doyle estêve, entretanto, ao serviço da pátria, nos momentos críticos. Sem ser um político, na acepção limitada do vocábulo, soube êle prestar valiosos serviços políticos ao seu país. Pode a gente discordar de seu ponto de vista particular, em relação à tese por êle defendida; mas há que reconhecer-se que êle não procurou servir a um partido, mas à comunidade britânica. E o fêz com honestidade e com elegância. É assim que, em defesa do Exército Britânico na África do Sul, publicou em 1900 “The Great Boer War” e, dois anos depois, um estudo mais minucioso dessa guerra, intitulado “The War in South Africa; its Causes and Conduct”.
Durante a primeira Grande Guerra sua pena estêve ao serviço dos Aliados. Escreveu abundantemente. Entre outros trabalhos, largamente traduzidos, podemos citar “Cause and Conduct of the World War”, que logrou traduções em doze línguas.
Suas preocupações pelas colônias inglesas não eram do tipo das de um agente do govêrno, mas das de um pensador de raça. Iniciando-se nesse gênero com a guerra dos boers, pode a rigor dizer-se que aquêles dois livros pouco antes citados foram precedidos por “The Tragedy of the Korosko”, em 1898, que é uma pequena história do Sudão anglo-egípcio e “The Green Flag”, que versa ainda assuntos africanos.
Neste grupo se inclui uma obra lançada em 1906, considerada a sua obra-prima — “Sir Nigel.”
Como obras menores e de temas variados — tôdas, porém, defendendo uma tese de subido interêsse, podem citar-se, cronolôgicamente, a partir de 1894, até 1912, as seguintes: “Round the Red Lamp”, The Stark Mumro Letters”, “A Duet with an Occasional Chorus”, “Tlironglt the Magic Door”, “A Modern Morality Plity”, “The Crime oJ the Congo”, “Songs of tire Rüad” e “Tire Last World”.
Entre as suas últimas obras uma se conta, de grande importância e que alcança seis volumes, publicados entre 1915 e 1920: “History of the Britislr Compaign in France and Flanders” e que representa a sua última contribuição para a sua terra e para a sua gente no setor político propriamente dito.
É que, a essa altura, grandes médiuns inglêses, americanos e da Europa continental haviam chamado a atenção de conspícuas figuras do mundo científico inglês. Os fenômenos que em inglês se diziam do neo-espiritismo provocavam estudos e polêmicas, entusiasmos e revoltas. Em 1882, fundara-se, em razão disto, a Society for Psychical Research; os nomes mais brilhantes dos céus da ciência se haviam ligado a essa criteriosa organização que, se críticas merece, certamente é por sua teimosia em não querer reconhecer numa fenomenologia amplíssima e constatada sob os mais rigorosos métodos de ensaio, que a geratriz de tantos fenômenos eram os Espíritos dos mortos e, por vêzes também, os Espíritos dos vivos.
— Que nomes prestigiavam a SOCIETY FOR PSYCHICAL RESEARCH?
— Os mais brilhantes, com efeito, entre outras notabilidades, o Professor Sidgwick, Sir William Crookes, F. W. H. Myers, Frank Podmore, Professor Jomes H. Hyslop, Doutor R. Hodgson, Professor Charks Richet, Sir Oliver Lodge, Professor C. G. Jung, Sir William Barrett, Doutor Gustave Geley, Doutor Edmund Gurney, Professor Von Schrenck-Notzing, Professor Henry Bergson e tantos outros, muitos dos quais eram membros da Sociedade Real e da Academia Francesa, vale dizer, portadores das mais altas distinções honoríficas. Sir Arthur Conan Doyle ingressou na Sociedade de Pesquisas Psíquicas. Convencido do fenômeno da manifestação do Espírito dos mortos, aderiu à causa do Espiritismo. Fêz pesquisas, por conta própria, com os maiores médiuns da Europa. Lobrigando o alcance religioso e filosófico de tais fenômenos, a êles se dedicou e procurou servir com a honestidade e com a segurança que lhe permitiam um caráter inteiriço e uma enorme bagagem de conhecimentos científicos.
Não se limitou a ver e ouvir. Viajou, fazendo conferências de propaganda. Estêve mais de uma vez nos Estados Unidos, na África, na Europa continental e no Oriente, até a Austrália e a Nova Zelândia.
Entre outros escritos sôbre o assunto publicou em 1918 “A New Revelation”, dois volumes de recordações dessas viagens, dos quais o último, saído em 1924, tem por título “My Memories and Adventures”.
Em 1926 lançou em dois volumes “History o! the Spiritualism”, que tivemos o ensejo de traduzir agora para a editôra “O Pensamento”, precedendo-a destas ligeiras notas biográficas e de um prefácio à edição brasileira.
Pode dizer-se que é a única História do Espiritismo surgida até agora. Fora dela o que apareceu até aqui não passa de estudo limitado no tempo e no espaço e que, de forma alguma pode emparelhar-se com o presente volume onde, além da história descritiva, se encontra, realmente, muito de filosofia da história do Espiritismo.
Estas notas foram escritas para mostrar ao leitor menos familiarizado com as letras inglêsas que Sir Arthur Conan Doyle não é apenas o criador de Sherlock e o escritor de contos policiais: é uma figura expressiva nas letras inglêsas e uma das figuras a que o Espiritismo — inclusive o Espiritismo de feição religiosa — muito deve. Em plano internacional a sua obra se inscreve logo depois da de Allan Kardec e se alinha com a dêsses luminares que se chamaram Ernesto Bozzano, Léon Denis, Camille Flammarion, Alexander Aksakof, Vale Owen e Stainton Moses.
Os espíritas de fala portuguêsa estão de parabéns com a apresentação em nossa língua, da obra magnífica de Sir Arthur Conan Doyle.
Extraído por Estênio Negreiros, do livro História do Espiritismo/Índice/Esboço Biográfico, publicado na página https://www.limiarespirita.com.br/livros/historia.pdf
Nota do transcritor desta matéria: mantive a escrita original conforme as regras de acentuação gráfica da época da tradução da obra para a Língua Portuguesa pela Editora Pensamento em 1960.