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-UMA SOCIEDADE LÍQUIDA E INDIVIDUALISTA: O QUE ESTÁ POR TRÁS DA EPIDEMIA DE SOLIDÃO-

Por Ana Zarzalejos Vicens Aceprensa

 

Uma colaboração de Estênio Negreiros (estenio.gomesnegreiros57@gmail.com)

 

 

Há algum tempo, as notícias de pessoas que passaram dias mortas em suas casas antes que alguém percebesse faziam-nos balançar a cabeça com incredulidade: Como é possível? Será que há realmente pessoas tão solitárias?

 

Agora, o adjetivo "só" tornou-se um sobrenome comum nessas sociedades do século XXI: mães solteiras, menores migrantes sozinhos, idosos sozinhos, doentes sozinhos, jovens sozinhos…

 

A solidão já não é exclusiva de nenhum grupo, como indicam os dados mais recentes dos países europeus.

 

Os dados da Espanha estimam que 23% dos entrevistados se sentem sozinhos o dia todo. E na União Europeia como um todo, estima-se que cerca de 30 milhões de pessoas se sintam frequentemente sozinhas.

 

A solidão indesejada aumenta entre adolescentes e jovens, bem como entre idosos. No entanto, estudos recentes indicam que esse fenômeno é mais frequente entre os jovens, de acordo com dados de 2023 do Observatório Estatal da Solidão Indesejada.

 

A solidão pode ser tangível agora. Apartamentos e quartos individuais estão em alta, e os patinetes elétricos individuais substituem os carros familiares. Assim, o novo urbanismo e a nova mobilidade tornam tangível uma realidade cada vez mais difundida.

 

A face mais visível da solidão

 

Talvez a solidão entre os idosos seja a mais conhecida. A imagem do idoso que vive sozinho e que sai de casa (se puder) exclusivamente para comprar pão e passar na farmácia habita no imaginário coletivo.

 

Na maioria dos casos, não se trata de aversão à humanidade associada à idade. As causas costumam ser outras. Em primeiro lugar, os problemas de saúde relacionados à velhice podem limitar muito a mobilidade e as interações sociais ao longo do dia.

 

Além disso, o passar dos anos inevitavelmente leva à morte de familiares, amigos e conhecidos, fazendo com que a pessoa perca cada vez mais relacionamentos próximos.

 

Além disso, a crescente tecnologização da vida cria uma esfera pública que exclui cada vez mais os idosos da vida em comum. Não é que não possam usar um telefone celular ou assistir a uma série na Netflix, mas realizar qualquer trâmite administrativo é um pesadelo que os faz sentir menos autônomos do que são e muito solitários em uma sociedade com cada vez menos atenção presencial.

 

A isso se soma o fato de que o modelo de família mudou, e cada vez mais pessoas chegam à velhice sem parceiro. Também é menos comum que os idosos vivam na casa de seus filhos, em parte porque o número daqueles que não tiveram filhos está aumentando.

 

Finalmente, a solidão entre os idosos é ampliada por um modelo de sociedade que valoriza o indivíduo por sua capacidade produtiva e rejeita o declínio do corpo humano.

 

"Quantos impactos publicitários de produtos antienvelhecimento recebemos durante o dia, por exemplo? Tudo isso, no final, alimenta nosso imaginário coletivo e, sem querer, excluímos de nossa vida tudo o que tenha a ver com a velhice", explica José Ángel Palacios, coordenador de comunicação da Fundação Grandes Amigos, que apoia os idosos em suas necessidades.

 

Doentes e dependentes

 

A mesma dinâmica afeta todas as pessoas dependentes, e, na verdade, ter uma doença ou deficiência é um fator de risco para ficar sozinho.

 

As dificuldades em conciliar o custo econômico de manter os cuidados necessários para pessoas com dependências de longo prazo e a aversão a tudo que nos lembra que não somos indivíduos autônomos e capazes de tudo agravam esse fenômeno da solidão.

 

Marimar e Víctor vivenciaram isso desde que seu filho César foi diagnosticado com uma doença rara. Colocar um nome no que César estava sofrendo foi o primeiro passo para o isolamento, porque quando seu filho tem um transtorno que ninguém mais tem e que não aparece nos anúncios de fundações, você fica sem referências para se apoiar.

 

A partir daí, a jornada para garantir os melhores cuidados para César foi uma verdadeira batalha marcada pela sensação constante de que estavam sozinhos.

 

Víctor deixou o emprego e cuida de César no dia a dia, sendo capaz de trocar a sonda traqueal melhor do que muitos médicos, e quando seu filho teve COVID-19 no pior momento da pandemia, ele ficou internado sozinho com ele na UTI por mais de um mês.

 

Em resumo, a vida de Víctor e Marimar está voltada para casa e deixa pouco tempo para descansar, socializar ou até mesmo trabalhar.

 

No Hospital de Cuidados Laguna, em Madri, onde César é atendido gratuitamente há alguns anos, encontraram um alívio para essa intensidade e, sobretudo, o apoio de que precisavam, tanto dos profissionais do centro quanto das outras famílias que enfrentam situações semelhantes.

 

Discursos pós-modernos que isolam os jovens

 

E se tudo isso é o que causa solidão, como explicar a que tantos jovens sofrem? A eles, nativos digitais, que gozam de boa saúde e dominam a cultura da imagem na qual cresceram imersos, o que os faz sentir excluídos desta sociedade?

 

Ah, é que a solidão pode assumir rostos e formas muito diversos.

 

Ser adolescente ou jovem sempre foi marcado por incertezas e uma tendência natural a se sentir incompreendido pelo mundo em que estão tentando se encaixar. Mas algumas circunstâncias atuais complicam um pouco mais essa experiência universal.

 

Em primeiro lugar, os jovens são bombardeados por discursos que equiparam felicidade ao bem-estar. E esse bem-estar, quanto mais individual, melhor.

 

É, como explica o filósofo Gregorio Luri, o grande paradoxo de uma sociedade que fez da autonomia sua religião laica. "Acontece que, depois, quando a temos, sentimos a solidão", reflete.

 

As redes sociais geralmente são apontadas como as grandes culpadas por muitos problemas dos jovens e pelo isolamento em particular.

 

"Nossas vidas têm muito pouco a ver com as imagens que a sociedade está continuamente apresentando sobre si mesma", reflete Luri.

 

No final, se o que um usuário vê constantemente nas redes são vidas imaculadas e perfeitas, não é surpreendente que ele olhe para a sua própria, cheia de limitações, e se pergunte o que está fazendo de errado.

 

De fato, termos como #FOMO (Fear Of Missing Out, medo de perder algo, em inglês) só fazem sentido nesta sociedade digital e foram gerados pela experiência de isolamento nas redes sociais.

 

A distorção da amizade

 

Se você perguntar a um jovem, ele explicará que a solidão gerada pelas redes sociais vai muito além. María Pulido, estudante do último ano de Enfermagem, aponta que a digitalização das relações transformou o conceito de amizade até esvaziá-lo.

 

"Parece que com uma mensagem ou uma foto a amizade está coberta", lamenta.

 

Num mundo que tem a gratificação instantânea como sua oferta principal, Pulido reivindica que os relacionamentos reais são o que acalmam a solidão e, para alcançá-los, é necessário tempo.

 

"A pior solidão que existe é quando você está cercada por pessoas", assegura.

 

Juan de Haro, psicólogo clínico especializado em terapia familiar e de casais, aponta que a solidão não é a ausência de relacionamentos, mas a experiência de que alguém pode ser ferido por suas interações com o outro.

 

Numa sociedade que propõe a sensação e o prazer como medida da felicidade, a fuga do sofrimento, inevitável quando falamos de relações interpessoais, está na ordem do dia.
Por isso, De Haro dedica-se à solidão mais contraditória que existe: aquela que ocorre dentro de um relacionamento, seja romântico ou familiar.

 

Num contexto de medo de mostrar vulnerabilidade e de que a própria dor não seja reconhecida, "vemos muitos adolescentes que vêm à terapia sozinhos e não querem que seus pais saibam", explica.

 

Por último, os jovens de hoje em dia têm a particularidade de contar com biografias líquidas. Este termo, que se refere ao famoso conceito de "vida líquida" cunhado pelo filósofo Zygmunt Bauman, foi proposto pelo padre jesuíta e sociólogo José María Rodríguez Olaizola.

 

Olaizola aborda a questão em seu livro "Bailar con la soledad" ("Bailar com a solidão", sem edição no Brasil) e explica a que se refere com esse termo.

 

"Uma das solidões contemporâneas mais novas tem a ver com a perda do que é geracional, com o que eu chamo de biografias líquidas", aponta. "Até muito recentemente, havia muitos elementos geracionais que faziam com que todas as pessoas da mesma idade e de contextos semelhantes passassem pelas mesmas experiências ao mesmo tempo. Havia uma idade para parecer jovem, uma idade para casar, uma idade para ter filhos…", reflete.

 

No entanto, esses elementos de coesão não existem mais, e os jovens enfrentam um contexto em que é cada vez mais difícil encontrar alguém semelhante, o que aumenta a dificuldade deles em "se identificar com o outro, conhecer-se e reconhecer-se".

 

"O processo de conhecer o outro é muito mais difícil", sustenta Olaizola.

 

Assim, os relacionamentos na vida real se complicam, e as redes sociais se enchem de descrições de si mesmos na biografia que procuram um par a todo custo, mesmo que seja online.
A boa solidão

 

O que fica claro é que a solidão pode ser uma experiência subjetiva, embora as circunstâncias ao redor não o indiquem. E que, de qualquer forma, se não for desejada, causa grande sofrimento.

 

No entanto, nem tudo é negativo quando falamos de solidão.

 

Gregorio Luri defende aprender a conviver consigo mesmo e, acima de tudo, fala das virtudes do silêncio.

 

De fato, fenômenos como o retorno ao rural ou o desejo cada vez maior de se desconectar das redes sociais são lidos nesse contexto.

 

Diante de um cenário de barulho, hiperconexão e que tenta o consumidor com uma oferta aparentemente ilimitada de possibilidades, há pessoas que escolhem se retirar para onde o bombardeio não é constante e onde os relacionamentos podem (não necessariamente, e sem a intenção de idealizar a experiência rural) tornar-se mais próximos.

 

O Estado, culpado ou responsável?

 

Mas o que fazemos com aqueles que não desejam a solidão? O sistema deve se ocupar desse problema? Aliás, pode

 

Se ouvirmos Pilar Campos Monfort, chefe de enfermagem do Hospital de Cuidados Laguna, a resposta é que, em parte, sim.

 

Campos é clara: os familiares de pessoas dependentes precisam de mais recursos para poder atendê-los sem que isso consuma suas vidas e saúde. Ou seja,  quando a solidão é causada pela marginalização dos cuidados em favor de um modelo de indivíduo produtivo e independente, é responsabilidade do sistema reequilibrar-se e garantir que "bem-estar" não seja um termo vazio que equivalha apenas a opções de consumo.

 

Na questão do envelhecimento, é talvez onde há mais conscientização sobre esse problema. Na Espanha, algumas comunidades autônomas oferecem programas para amenizar a solidão na velhice.

 

Na França, também está sendo discutida uma estratégia conhecida como "bom envelhecimento" para atender às necessidades dos idosos. O projeto recebeu críticas por ser considerado uma proposta vazia que não oferece respostas reais ao problema do isolamento social. Como sempre, há uma reivindicação de que o Estado deve se envolver mais.

 

E não é que não haja tentativas. No Reino Unido, por exemplo, foi criado em 2018, sob o governo de Theresa May, um departamento específico para abordar o problema da solidão.

 

No Japão, também existe um Ministério da Solidão e do Isolamento. Tetsushi Sakamoto, ministro responsável por essa pasta, afirmou que os laços sociais estavam enfraquecidos e que, a partir de seu cargo, lutaria para reverter a tendência que tornou a solidão um grave problema de saúde pública no país.

 

Apesar de tudo, Gregorio Luri e José María Olaizola mostram-se céticos em relação à ideia de que o sistema pode fazer muito mais em relação à solidão e acreditam que a responsabilidade individual desempenha um papel mais importante.

 

Como Zygmunt Bauman disse em "A teoria sueca do amor", o famoso documentário que abordou a solidão e o individualismo no país nórdico: "O que o Estado não pode proporcionar é estar com outras pessoas".

 

Publicado na página  https://www.gazetadopovo.com.br/ideias/uma-sociedade-liquida-e-individualista-o-que-esta-por-tras-da-epidemia-de-solidao em 02/01/2024/Copyright © 2024, Gazeta do Povo. Todos os direitos reservados.